Financiamento da saúde no país depende cada vez mais dos municípios

Mesmo com a recomposição do orçamento federal para a saúde em 2023, União teve uma de suas menores participações no financiamento da área. Por outro lado, municípios registraram sua maior cota no gasto, destinando à saúde R$ 58 bilhões acima do mínimo exigido pela Constituição Federal.

Desempenho de 2023

O ano de 2023 confirma a tendência de aumento gradual no gasto com saúde realizado pelo conjunto dos municípios brasileiros ao longo do tempo. Observa-se que, desde 2017, as prefeituras ampliam os recursos direcionados para o setor, com destaque para 2020, que apresentou uma forte elevação, resultante do enfrentamento à Covid-19. Os R$ 276,96 bilhões empregados na área em 2023 correspondem a um crescimento real de 8,2% em relação ao ano anterior.

A expansão das despesas com saúde ocorre de forma diferenciada quando se considera o porte populacional como recorte. Apesar de serem verificadas em todas as faixas populacionais, nos municípios com população entre 50 mil e 100 mil habitantes e naqueles entre 100 mil e 200 mil moradores, as altas ficaram acima da média, fixando-se em 10,2% e 9,2%, respectivamente. Já nas cidades com menos de 20 mil residentes, o incremento foi inferior à média, posicionando-se em 6,5%.

Recursos próprios x transferências para a saúde

A despesa municipal com saúde é financiada pelos recursos próprios dos entes locais e por transferências federais e estaduais destinadas exclusivamente para as ASPS. Exceto em 2020, como decorrência do combate à Covid-19, constata-se que a maior parcela do desembolso municipal no setor é financiada por recursos próprios dos entes locais. Em 2023, a tendência se manteve, com a participação dos recursos próprios respondendo por 54,6% dos dispêndios (ver gráfico a seguir).

Conforme dados do Siops, entre 2022 e 2023, o adicional real dos recursos próprios nas despesas municipais com saúde foi de 7,1%, chegando a R$ 154,32 bilhões no último ano. Já o salto das transferências do SUS foi praticamente da mesma intensidade, de 7,4%, ao atingir R$ 109,36 bilhões, no mesmo período.

O crescimento das transferências do SUS reflete o aumento da despesa empenhada da União com a função saúde no período. Conforme informações disponibilizadas pelo Siconfi do Tesouro Nacional, após a queda acentuada das despesas empenhadas em 2022, de 22,4%, a União elevou o empenho em 2023,  para R$ 183,22 bilhões.

Pode-se inferir que o acréscimo relativo das transferências no financiamento das despesas municipais com saúde resultou, pelo menos em parte, da aprovação da EC nº 126 (PEC da Transição), em dezembro de 2022. Esse ordenamento recuperou a obrigatoriedade do cumprimento do piso da saúde de 15% da RCL, estipulado pela EC nº 86, de 2015. Tal retomada foi permitida em razão da proposição, na própria nº EC 126, da revogação de artigos referentes ao congelamento dos gastos da EC nº 95 (Teto de Gastos), de 2016, a partir da sanção de lei complementar que dispusesse sobre o novo regime fiscal, o que de fato ocorreu em agosto de 2023 (LC nº 200).

Junta-se a isso, a ampliação da participação das ASPS no orçamento impositivo, que, pela EC nº 86, garantia 0,6% da RCL para a saúde e, a partir da EC 126, passou para 1% da RCL.

Gasto com saúde per capita

Os municípios apresentaram um gasto médio com saúde de R$ 1.383,01 por habitante em 2023, o que representou um adicional de R$ 104,59 em relação ao ano anterior o triplo do valor de 2002, que era de R$ 453,30, já considerando a inflação.

O gasto médio por habitante também aponta grande variação quando se considera o porte populacional. Os municípios com até 20 mil habitantes continuam com o maior valor médio per capita, de R$ 1.542,60. No extremo oposto, estão as cidades na faixa de 200 mil a 500 mil habitantes. Vale destacar que os estratos populacionais que apresentam os maiores dispêndios médios são também os que possuem as maiores receitas correntes per capita, sugerindo que, quanto maior a receita municipal, maior o gasto com saúde.

O comprometimento dos municípios com a saúde

Ainda que a regra constitucional oriente a destinação ao SUS de 15%, no mínimo, da receita municipal própria de impostos e de transferências constitucionais oriundas de impostos, observam-se, ao longo do tempo, aplicações sempre acima desse patamar (ver gráfico a seguir). A série histórica permite verificar que, até 2017, os municípios destinaram parcelas crescentes dessas mesmas receitas. Apesar de uma relativa estabilização em um patamar ligeiramente inferior a partir de 2018, o último ano da série histórica ganha destaque ao recuperar o mesmo percentual de aporte de 2017, de 24,2%.

Os esforços municipais para o financiamento das ASPS resultaram em acréscimos relevantes no montante de recursos direcionados ao SUS. Em 2023, os gastos municipais que excedem a exigência constitucional adicionaram R$ 58,55 bilhões à saúde pública nacional. Se considerarmos os últimos 10 anos, é possível afirmar que os municípios contribuíram com R$ 442,56 bilhões a mais que a exigência mínima ao financiamento do SUS.

O financiamento da saúde no Brasil

A PEC da Transição contribuiu para que a União aumentasse sua participação no financiamento da saúde de 37,6% para 39,6%, entre 2022 e 2023. Ainda assim, a parcela da União se encontra nos menores patamares históricos, conforme pode ser observado no gráfico abaixo. Por outro lado, a presença contributiva dos municípios nas despesas com ASPS tem subido quase que continuadamente, atingindo 33,8%, em 2023. Já os estados arcaram com a menor parte, respondendo por 26,6%, e pouco alteraram seus percentuais nos últimos 22 anos, quando comparado com os demais entes.

Preocupa observar a tendência de diminuição da participação do Governo Federal, uma vez que essa esfera é a que retém a maior parcela da carga tributária disponível. Os municípios, ao contrário, ficam com a menor fatia da carga tributária disponível e se mostram cada vez mais importantes para o financiamento da saúde no país.

As emendas parlamentares na destinação de recursos para a saúde

Desde a publicação da EC nº 86, de março de 2015, as emendas parlamentares (EP) vêm gerando uma nova dinâmica na alocação dos recursos financeiros no SUS. Observam-se grandes montantes empenhados e pagos para o setor saúde ao longo do tempo a título de emendas. Em 2023, R$ 14,72 bilhões foram empenhados e R$ 12,59 bilhões foram pagos na área da saúde por meio das EPs (ver tabela abaixo).

Essa nova dinâmica teve início com a EC 86, que estabeleceu o orçamento impositivo, garantindo 1,2% da RCL para ser alocada por meio de EPs individuais, sendo metade (0,6%) obrigatoriamente destinada às ASPS. Esse processo de crescimento dos valores transferidos para a saúde por meio de EPs ganhou fôlego em 2019 com a aprovação de dois novos dispositivos legais: (i) a EC 100, que estendeu a compulsoriedade para as emendas de bancada estaduais; e (ii) a Lei 13.957, que criou as emendas das comissões permanentes e as emendas do relator-geral. Esta última, conhecida como “orçamento secreto”, foi considerada inconstitucional pelo STF em dezembro de 2022. Por fim, a aprovação da PEC da Transição, ao ampliar de 1,2% para 2% da RCL a distribuição dos valores para as emendas impositivas individuais, elevou de 0,6% para 1% da RCL, a partir de 2023, a alocação dos recursos em ASPS por meio dessas EPs.

Essa nova dinâmica na alocação de recursos no SUS, que incorporou a atuação parlamentar na destinação nas transferências federais e estaduais para os fundos municipais, ampliou a complexidade da gestão financeira do setor. As transferências de recursos por meio de EPs não têm garantia de continuidade ao longo do tempo, e sua alocação pode não refletir o planejamento realizado pelas equipes de saúde, podendo gerar novos desafios às gestões municipais do SUS. Vale ressaltar ainda que a influência das EPs na alocação de recursos contraria o caráter prioritariamente redistributivo que devem ter as transferências federais para estados e municípios.

Perspectivas para o financiamento da saúde

A publicação da PEC da Transição e a posterior sanção do novo RFS, ou Novo Arcabouço Fiscal (LC 200/2023), alteraram a regra do Teto dos Gastos, que mantinha o dispêndio mínimo da União com base no valor alocado em 2017, atualizado pelo IPCA. A LC 200 retomou o regramento anterior (EC 86), que orienta a União a aplicar em saúde, obrigatoriamente, o correspondente a 15% de sua RCL. Essas mudanças possibilitaram a expansão das despesas federais em saúde ao longo de 2023. Apesar disso, a disponibilidade desse recurso no futuro está em debate.

Isso porque o RFS impõe, entre diversas regras, um teto de 2,5% para o aumento das despesas primárias da União. Dessa forma, num cenário de elevação das receitas, para se manter a destinação obrigatória mínima de parcelas da RCL em saúde e educação e, ao mesmo tempo, respeitar o teto de 2,5%, a União será levada a reduzir o dispêndio com outras despesas primárias não vinculadas. Gastos sociais referenciados ao salário mínimo e programas de investimentos, entre outros, terão que ser acomodados na parcela restante dos 2,5% da alta permitida, o que poderá comprometer a manutenção de serviços, benefícios sociais e investimentos [1] . Assim, a fim de se atender às metas estabelecidas no RFS num ambiente de forte restrição orçamentária para despesas primárias não vinculadas, a pressão para se desfazer ou afrouxar as regras constitucionais de aplicação na saúde e educação poderão se intensificar, colocando em risco o já insuficiente financiamento da saúde.

Nesse contexto, as regras do RFS, ao suscitarem questionamentos recentes quanto à permanência dos pisos mínimos para a área, aliadas ao aumento da demanda gerada pelo rápido envelhecimento da população, colocam em perspectiva a possibilidade de agravamento da debilidade estrutural do financiamento da saúde em todos os níveis de governo.

[1] BASTOS et al., 2023. O novo regime fiscal restringirá a retomada do desenvolvimento em 2024? unicamp-nota-23-outubro-2023.pdf

Despesa com saúde | 2019 - 2023

Lista de siglas:

ASPS– Ações e Serviços Públicos de Saúde

IPCA– Índice de Preços ao Consumidor Amplo

EC – Emenda Constitucional

LC -Lei Complementar

PEC – Proposta de Emenda Constitucional

RCL – Receita corrente líquida

RFS – Regime Fiscal Sustentável

Siconfi – Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Brasileiro

Siops – Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos de Saúde

STF – Supremo Tribunal Federal

SUS – Sistema Único de Saúde