Cidades de maior porte perdem mais participação no ICMS em três anos do que em uma década

Reflexo da pandemia da Covid-19 e da incorporação dos critérios educacionais, capitais e grandes centros urbanos assistem a uma vertiginosa queda em seus índices de participação no ICMS nos três últimos anos.

Entre R$ 3,5 bilhões e R$ 4 bilhões serão redistribuídos entre os municípios em razão da introdução de novos critérios educacionais. FNP entra como Amicus Curiae na ADI 7.630.

Regras de transição da Reforma Tributária cristalizarão por décadas as disparidades na distribuição de ICMS.

Desempenho em 2023

As transferências estaduais de ICMS aos municípios registraram desempenho negativo nos últimos dois anos. Desde 2002, início da série histórica de Multi Cidades, foi o único registro de duas quedas anuais consecutivas na receita do imposto. Em 2022, houve um recuo real de 3,3%, seguido por um novo encolhimento, de 2,2%, em 2023, quando os repasses somaram R$ 171,63 bilhões. O valor não conta com a compensação da LC 201/2023, que, no entanto, seria insuficiente para anular a retração do biênio.

A LC 201/2023 definiu as cifras das compensações aos estados pelos efeitos nocivos da LC 194/2022 sobre a arrecadação de ICMS. O total de R$ 27,01 bilhões seria dividido em três parcelas: R$ 6,54 bilhões, a serem pagos em 2023; R$ 10,92 bilhões, em 2024; e R$ 4,78 bilhões, em 2025. No entanto, o volume previsto para 2024 foi antecipado, elevando os repasses para o exercício de 2023. Desses montantes, 25% são distribuídos aos municípios pelos mesmos critérios dos repasses normais do ICMS.

A LC 194/2022 impactou negativamente a arrecadação de ICMS em 2022 e 2023 ao definir combustíveis, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo como bens e serviços essenciais. Com isso, as alíquotas de ICMS para esses itens foram limitadas a 17% ou 18%, conforme a legislação de cada Estado. Antes, a gasolina, por exemplo, era taxada entre 23% e 34%. A alteração foi a principal causa da queda real de 3,3% na arrecadação do ICMS do conjunto dos estados em 2022 e de sua continuidade no primeiro semestre de 2023[1].

No segundo semestre, o recolhimento melhorou devido à nova regra de tributação de combustíveis estabelecida por outra LC, a 192/2022, que substituiu alíquotas sobre preços por valores fixos por unidade. Contudo, essa recuperação não foi suficiente para compensar as perdas nos primeiros seis meses, resultando na redução anual de 2,2% na arrecadação dos estados em 2023.

[1] Conforme dados do portal Compara Brasil (www.comparabrasil.com), que utiliza os Relatórios de Gestão Fiscal (RGF) e os Resumidos da Execução Orçamentária (RREO) disponibilizados pelos entes nacionais no Siconfi.

O desempenho das transferências de ICMS no biênio 2022-2023 foi pior nas cidades de médio e grande porte. Como se vê no gráfico abaixo, nas faixas a partir de 100 mil habitantes, as retrações são cada vez mais acentuadas, chegando a -14,7% nos municípios com mais de 500 mil habitantes. Entre as capitais, a performance foi ainda mais negativa, com duas quedas, de 8,3% e 8,9%, resultando ocasionando, portanto, uma diminuição acumulada de 16,4%. Por outro lado, nos municípios de menor porte, aqueles com até 100 mil habitantes, houve contração de 1% em 2022, seguida por um salto de 2,1%, em 2023, resultando em 1,1% positivo no biênio. Na média nacional, o tombo foi de 5,4% no período.

Comportamento em 2024

As transferências de ICMS devem subir em 2024, revertendo o cenário dos últimos dois anos. Dados do portal Compara Brasil revelam que a arrecadação do ICMS em 2024, no acumulado de janeiro a agosto, teve incremento real de 11% em relação ao mesmo período de 2023. Esse cenário animador é reflexo do bom desempenho da economia brasileira, que fechou 2023 com um crescimento no PIB de 2,9% e teve outro avanço de 2,9% no primeiro semestre de 2024, além da sistemática atual de cobrança do ICMS sobre os combustíveis.

Economia pós-Covid 19 e os critérios educacionais

O comportamento adverso nas transferências de ICMS foi significativamente mais intenso para as cidades de médio e grande porte no biênio 2022-2023. A explicação para isso está no encolhimento de seus índices de participação no ICMS (IPM). As principais causas desse estreitamento incluem a pandemia da Covid-19 e, mais recentemente, as alterações nas legislações estaduais que introduziram os indicadores de educação no cálculo desses índices.

Economia após-Covid-19

A pandemia afetou mais fortemente a economia dos grandes centros urbanos devido à imposição de medidas de restrição à circulação que foram necessárias naquele momento em razão da alta densidade populacional e da concentração de atividades econômicas presenciais como indústria, comércio, turismo, eventos culturais, entretenimento e serviços pessoais. Simultaneamente, a adoção em larga escala do trabalho remoto por parte das empresas levou trabalhadores a deixarem os centros urbanos em direção a cidades menores, estimulando o consumo e a economia nessas localidades.

O gráfico abaixo evidencia o impacto diferenciado da pandemia nos municípios conforme o porte populacional. De acordo com dados que compõem o PIB, ou seja, o valor adicionado da agropecuária, indústria e serviços (excluindo administração pública), há uma relação inversa entre porte populacional e taxa de crescimento econômico entre 2019 e 2021. Com efeito, cidades com mais de 500 mil habitantes experimentaram uma retração na atividade nesse período.

Como resultado, o peso dos grandes municípios, aqueles com mais de 500 mil residentes, no valor adicionado total, que vinha diminuindo gradualmente, com um retrocesso de 3,6 pontos percentuais de 2010 a 2019, perdeu mais 5,2 pontos percentuais em apenas dois anos, 2020 e 2021. Em contrapartida, os municípios com até 20 mil habitantes tiveram um aumento de 1,9 ponto percentual no mesmo biênio. Veja gráfico a seguir.

Esse movimento se refletiu nos índices de participação no ICMS, pois, conforme estabelecido pela Constituição Federal, três quartos (75%) da receita do imposto eram distribuídos, até 2022, com base no valor adicionado gerado pelas empresas instaladas nos municípios.

 Para o cálculo da partilha, são utilizados os dados de valor adicionado dos dois anos anteriores ao ano da apuração. Assim, os índices de participação dos municípios em 2022, apurados em 2021, utilizaram dados de valor adicionado de 2019 e 2020.

O primeiro impacto da pandemia nos IPMs foi, portanto, observado em 2022, marcando o início de uma forte movimentação dos índices em favor dos pequenos municípios, em detrimento daqueles com maior população.

Nos IPMs de 2023, o efeito da crise econômica e sanitária foi ainda mais acentuado, uma vez que o cálculo considerou os valores adicionados de 2020 e 2021, ambos fortemente impactados pela pandemia, que afetou de modo especial a economia dos grandes centros urbanos.

Critérios educacionais

Conforme estipulado pela EC 108/2020, os estados tinham até 2022 para aprovar as leis que estabelecem os novos critérios educacionais para a distribuição do ICMS. Em 2023, oito estados (Acre, Alagoas, Amapá, Ceará, Pernambuco, Piauí, Roraima e Santa Catarina) haviam adotado esses critérios. Em 2024, mais 11 o fizeram (Bahia, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Sergipe). Outros seis cumprirão tal exigência em 2025 (Amazonas, Espírito Santo, Goiás, Rondônia, São Paulo e Tocantins)[2].

A EC 108 determina que pelo menos 65% da distribuição seja feita com base no valor adicionado fiscal, reduzindo o percentual anterior, de 75%. Os 35% restantes devem ser distribuídos de acordo com critérios definidos pelos estados, parcela que anteriormente era de 25%. Entre esses 35%, no mínimo 10 pontos percentuais devem ser repassados aos municípios considerando indicadores educacionais de melhoria nos resultados de aprendizagem e aumento da equidade, levando em conta o nível socioeconômico dos alunos.

Um dos aspectos que têm suscitado maior discussão é o fato de alguns estados, ao introduzirem o critério educacional como critério de distribuição do ICMS, desconsiderarem completamente, ou de forma parcial e inadequada, o tamanho das redes de ensino e/ou do porte populacional dos municípios. Foi o que aconteceu nos estados do Amapá, Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Ceará, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Piauí, Rondônia e Sergipe.

A fim de avaliar os impactos da incorporação dos critérios educacionais na distribuição do ICMS em 10 desses estados[3], Multi Cidades comparou os índices de participação antes e após a adoção dos novos critérios. Ou seja, os IPMs calculados com base nos novos critérios foram confrontados com os do ano anterior, quando ainda não eram considerados. Para os estados que implementaram os critérios educacionais em 2023, os IPMs dos municípios de 2023 foram avaliados com os de 2022. Nos estados que os adotaram em 2024, a comparação foi entre 2024 e 2023. Finalmente, para aqueles que os adotarão em 2025, foram utilizados os IPMs preliminares de 2025 contra os de 2024.

Além disso, foi levado em conta o volume efetivamente transferido de ICMS pelos estados em 2023. Sobre essas quantias, aplicaram-se as mencionadas variações dos índices, com o objetivo de avaliar o impacto financeiro da introdução dos critérios educacionais nas transferências de ICMS. Embora seja uma pesquisa preliminar e outras variáveis possam influenciar a distribuição do ICMS, os resultados evidenciam uma tendência bem contundente.

O estudo estima que, nesses 10 estados, cerca de R$ 2,7 bilhões serão redistribuídos em benefício dos municípios de menor porte populacional, especialmente aqueles com até 50 mil habitantes, com perdas equivalentes para os de maior porte populacional. Essa migração de recursos corresponde a 5,2% de todo o ICMS transferido por esses estados em 2023. O mesmo exercício foi aplicado nas demais unidades da federação que utilizaram o tamanho da rede de ensino nos critérios educacionais. Nesse caso, o indicador de movimentação financeira foi de apenas 0,8%, quase sete vezes menor. Essa realocação de recursos em favor de cidades com menor população, que se iniciou em 2023, tende a se intensificar nos próximos anos, uma vez que muitos estados estão implementando as novas regras gradualmente.

O Estado de Minas Gerais é um dos que regulamentaram a matéria sem considerar o tamanho das redes municipais de ensino nem a população dos municípios, por meio da Lei Estadual 24.431/2023, que entrou em vigor em 2024. Em abril do mesmo ano, o PCdoB ajuizou a ADI 7.630 no STF, com pedido de medida cautelar, argumentando que a lei mineira é incompatível com a Constituição Federal, uma vez que contraria os objetivos das mudanças trazidas pela EC 108. Segundo a ação, disso resulta significativa redução da receita de ICMS para cidades com maior população e cria uma disparidade substancial de recursos por aluno entre as redes municipais. Além disso, mesmo os municípios que alcançam os melhores desempenhos educacionais não são necessariamente os que receberão as maiores quantias por aluno.

Alinhada a essa argumentação, a FNP protocolou, em 22 de agosto de 2024, um pedido ao STF para atuar como Amicus Curiae na ADI, com o objetivo de garantir que o Supremo tenha uma visão completa sobre os desafios e as consequências da decisão, fornecendo-lhe memoriais com análises detalhadas sobre o impacto de não se considerar o número de alunos da rede municipal de ensino na distribuição do ICMS. Essa ausência provocou ou provocará uma grande disparidade de recursos por aluno entre as redes municipais, sem que com isso se garantam melhores desempenhos educacionais, notadamente nas maiores redes de ensino.


[2] Apenas o Estado do Rio de Janeiro ainda não sancionou a nova legislação. O PL 6.358/2022, referente ao tema em questão, encontrava-se em tramitação na Alerj em outubro de 2024.

[3] O Estado do Amazonas não fez parte do estudo, pois não foi possível localizar os dados dos índices de participação de seus municípios, preliminares ou definitivos, para o exercício de 2025.

Efeito combinado da pandemia e dos critérios educacionais

Antes do advento da Covid-19 e da introdução dos critérios educacionais, a queda paulatina que os municípios de maior porte populacional vinham sofrendo na participação no ICMS decorria do processo de descentralização da atividade econômica em direção aos municípios adjacentes e ao interior do país. A situação, porém, se agravou bastante com esses dois novos fatores.

Em 2010, a média dos índices de participação no ICMS das capitais era 29,2%. Em 2020, uma década depois, o IPM médio havia caído para 25,9%, uma redução relativa de 11,3%. Considerando os 40 municípios com mais de 500 mil habitantes, a perda foi de 13,6%, bem acima do patamar de 1,6% registrado pelo grupo com população entre 200 mil e 500 mil residentes, e também dos 2,2% para a faixa entre 100 mil e 200 mil moradores, no mesmo período.

Entretanto, entre 2021 e 2024, o recuo do IPM médio experimentado pelas capitais foi de 17,2%, ou seja, um declínio mais severo do que aquele apurado em toda a década anterior. Para os municípios com mais de 500 mil habitantes, que haviam sofrido uma retração acumulada de 13,6% na década antecedente, a perda acumulada no triênio 2022-2024 foi de 18,1%. Entre os municípios que têm de 200 mil a 500 mil habitantes, o revés no mesmo período ficou em 8,9%.

Como os índices de participação de cada Estado devem totalizar 100%, se alguns municípios perdem pontos percentuais nesse rateio, outros necessariamente os ganham. Nesse cenário, os grandes beneficiados foram os de menor porte populacional. Por exemplo, entre aqueles com até 20 mil habitantes, que já haviam apresentado um aumento médio de 10,8% em seus IPMs entre 2010 e 2020, o crescimento foi de expressivos 14,4% no triênio 2022-2024.

Impactos na transição para o IBS

A reordenação dos índices de participação pós-pandemia terá um impacto significativo na futura partilha do IBS, no contexto da Reforma Tributária em curso. Conforme previsto no PLP 108/2024, o Comitê Gestor do IBS deverá publicar, até 31 de agosto de 2027, no Diário Oficial da União, o coeficiente de participação dos estados, do Distrito Federal e dos municípios nos valores retidos do IBS. Para os municípios, esses coeficientes serão calculados com base na proporção da receita de QPM-ICMS e ISS de cada ente em relação a essa mesma receita global do período de 2019 a 2026.

A extinção dos atuais ISS e ICMS será gradual entre 2029 e 2033, assim como também será progressiva a introdução das alíquotas do IBS. Nesse período, as alíquotas do ICMS e do ISS serão reduzidas em um décimo ao ano, para serem extintas em 2033. Paralelamente, 80% do IBS recolhido por estados e municípios nesse período será retido para distribuição com base nos coeficientes de participação mencionados. Outros 15% do IBS funcionarão sob a nova sistemática que direciona a receita do tributo ao ente de destino das operações com bens ou serviços. Os 5% restantes serão alocados em um mecanismo de compensação para os entes que registrarem as maiores perdas de receita, parcela chamada de “seguro-receita”.

A partir de 2033, a parcela retida do IBS passará de 80% para 90%. Em 2034, começará um processo de redução gradual dessa parcela à taxa de 1/45 ao ano, resultando em uma diminuição de 2 pontos percentuais ao ano, até que, em 2077, essa transição seja concluída. Durante todo esse período, os 5% destinados à compensação de perdas continuarão sendo reservados e, a partir de então, sofrerão retração gradual ao longo dos 20 anos subsequentes, até 2097.

De acordo com esse arranjo, as parcelas retidas do IBS serão distribuídas por 50 anos aos entes federados com base naquele coeficiente fixo que terá sido definido em 2027. Esse índice será determinante na alocação de recursos do IBS para os entes subnacionais até, pelo menos, 2053, quando metade do total do IBS ainda estará sendo distribuída dessa forma, refletindo as posições relativas das receitas de ISS e da quota-parte de ICMS estabelecidas muitos anos antes, no período de 2019 a 2026. No entanto, é justamente neste intervalo em curso, como mencionado anteriormente, que os índices de participação dos municípios no ICMS vêm passando por uma profunda reordenação, especialmente a partir de 2022, com o fluxo desse tributo deslocando-se dos grandes centros urbanos em direção aos municípios de menor porte populacional.

Em 2019, as cidades com mais de 500 mil habitantes recebiam um montante de ICMS por habitante que era, em média, 9,7% abaixo da média nacional. Já em 2023, essa diferença subiu para 20,6%. Em contraste, pequenos municípios com até 20 mil habitantes, que em 2019 garantiam 15,8% acima da média, viram esse indicador saltar para 29,4%, em 2023. Até 2026, a tendência é que essa disparidade se acentue ainda mais.

Em suma, a reordenação dos IPMs e suas consequências na distribuição do IBS representam um desafio enorme para os grandes centros urbanos. A transição planejada na partilha do IBS, que se estenderá por décadas, será decisiva na redefinição do fluxo de recursos entre os entes federados, com implicações duradouras para as finanças municipais, pois aprofundará e consolidará as disparidades de receita corrente per capita existentes, penalizando e comprometendo a capacidade de prestação de serviços das cidades de médio e grande porte (veja mais sobre a receita corrente per capita aqui).

ICMS municipal | 2019 - 2023

Lista de siglas:

Alerj – Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro

ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e sobre a Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação

PIB – Produto Interno Bruto

IPM – Índice de Participação dos Municípios na repartição do ICMS

EC – Emenda Constitucional

STF – Supremo Tribunal Federal

PCdoB – Partido Comunista do Brasil

ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade

FNP – Frente Nacional de Prefeitas e Prefeitos

IBS – Imposto sobre Bens e Serviços